Hermeto Pascoal
compositor, pianista, organista, saxofonista, guitarrista, acordeonista, baterista, inventor de instrumentos musicais e muito mais
1936 - 2025
Recordo-me do dia em que ouvi pela primeira vez Hermeto Pascoal: o Pedro chegou a minha casa com um monte de discos e cassetes (pois, havia disso) e, sem cerimónias, dirigiu-se ao pick up e pôs o Zabumbê-bum-á a tocar - corria o ano de 1982 (sei, porque foi uns meses antes do Vilar de Mouros). Chegou ao fim, eu estava siderado, e pôs o Cérebro Magnético. E nesse dia não ouvimos mais nada senão Hermeto. Aquilo não era Jazz: era forró, era folk, era baião, era choro, era samba, era fusão, era sei lá o quê, era Hermeto. Eu não sabia bem o que era aquilo, mas as histórias em torno do velho bruxo eram muitas e alimentavam um bom serão. Havia aquelas, é claro, do encontro de Hermeto com Miles Davis, e aquele encontro, difícil de encontrar por esses dias, de Elis Regina com Hermeto em Montreux, em 1979.
O concerto que está na internet é algo enganador, talvez porque o álbum de Elis de 1982 inclui, além do concerto com o seu quinteto, com César Carmargo, os três célebres trechos - Asa Branca, Corcovado e A Garota de Ipanema -, em duo com Hermeto Pascoal. Uma revisitação do vídeo lança a dúvida, mas Itiberê Zwarg, o baixista de Hermeto Pascoal, esclarece: o encontro acontece depois do concerto de Hermeto, no dia seguinte, e eles apenas se tinham conhecido pela primeira vez, na noite anterior, em Montreux, muito longe do Brasil. O duo acontece pois depois do concerto de Hermeto e não da Elis. Porque é que ele foi parar ao disco trocado, talvez apenas a conveniencia editorial possa explicar.
Esses pouco mais de treze minutos estão registados e são célebres e estão na internet para nosso prazer. Um dos videos é o concerto da Elis todo, em mais de uma hora, mas aqueles treze minutos com o Hermeto são pura magia.
Hermeto ataca o piano, em curtos ostinatos, obsessivamente, enquanto Elis parece intrigada. O que estaria o bruxo a fazer? - parece interrogar-se, curiosa. Elis acaricia a cabeleira enorme do pianista, ensaia um trejeito, depois começa a trautear a canção, antes de se lançar no Asa Branca. Hermeto improvisa e Elis improvisa, e ficamos a perceber como ela poderia ter sido uma cantora de Jazz ou o que quisesse ter sido. Os dois interpretam ainda Corcovado e terminam com a Garota de Ipanema como nunca tinha sido cantada e interpretada, como não se sabia que era possível.
Aqueles momentos inciais de estranhesa/ interrogação de Elis foram tomados por muita gente como uma provocação de Hermeto, mas Itiberê Zwarg recusa: «Hermeto não estava a xingar Elis, não, aquilo é música, são dois grandes que se encontram». São treze minutos minutos apenas, que ouvimos uma e outra vez e ouviremos para sempre. Jazz ou bossa nova ou o que quer que seja, eternamente Hermeto Pascoal e Elis Regina. É Jazz quando faz chorar, dizia Zé Duarte.
Creio que Hermeto Pascoal veio pela primeira vez a Portugal em 1993, ao segundo Guimarães Jazz, ainda no Teatro Jordão; concerto a que não assisti.
E nestes dias em que falávamos do Hermeto, o César Machado contou-me uma história engraçada que se passou com o Hermeto - «O Ferro é que conta melhor a história».
O Hermeto era um poli-instrumentista, sabe-se, tocava literalmente tudo, do piano ao saxofone, da sanfona à bateria, as cordas, os sopros e as percussões todos, e inventava instrumentos que tocava e explorava. Pois nesse Novembro de 1993 passeava-se com o António Ferro em Guimarães e quis entrar numa igreja. Ao ver o orgão, Hermeto entusiasmou-se e pediu ao Ferro para falar com o padre.
O padre olhou-o de cima a baixo, desconfiado, e o caso não era para menos: albino, cabelão enorme, desgrenhado e branco, estrábico, de alpercatas, parecia mais um bruxo - pois, o órgão não é para experimentar, disse o padre, é só para as eucaristias.
Não foi fácil convencê-lo, mas o padre lá autorizou , vigilante.
E fez-se luz, conta o Ferro. Verdadeiramente sumptuoso! - O padre que não parava com os agradecimentos. E acabou: «amanhã temos missa; é às sete da manhã, por acaso não quer fazer o favor de vir cá tocar na missa?...»Só vi o Hermeto mais tarde, na Expo 98, num palco com vento e sem som, mas vi-o de novo num concerto na São Luiz, em que ele tocou tubos: uma vintena de tubos de metal enormes, de três ou quatro metros de comprido, que manejava com destreza; e um outro concerto, já não sei onde, em que tocou fusão, menos interessante; e vi-o de outras e tocou por diversas outras vezes em Portugal, entre as quais num concerto atribulado no FMM de Sines.
Tinha quatro concertos agendados para Portugal para o mês de Novembro.Enfim, há três anos que o meu amigo Pedro nos deixou, traído pelo fígado, e esta semana deixou-nos também o grande Hermeto.
Grande Pedro, enorme Hermeto!
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